amores expresos

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Brincando de mímica em russo




Júlia e Natália são agentes literárias. Júlia nasceu em São Petersburgo. Natália é de Moscou. Mudou-se para a cidade porque o marido era daqui. Acabou ficando, mesmo depois de se separar. O namorado, Maxim, é arquiteto em Moscou. Compraram um apartamento no último andar de um prédio antigo no canal Griboiédova, com vista para o teatro Mariinski, a cinqüenta metros de onde Dostoiévski teria imaginado a casa da usurária de “Crime e Castigo”. Deve ser uma das vistas mais sensacionais do mundo. O apartamento não fica atrás. Durante o comunismo, serviu de “moradia comunitária” – um eufemismo para velhos apartamentos convertidos em cortiços, abrigando várias famílias, cada uma em um quarto, com banheiro e cozinha comuns. Essa era a regra no centro histórico da cidade durante o período soviético. Com o plano de privatização, quem tinha dinheiro foi comprando quartos – e realocando as famílias em outras moradias – até reconstituir e ocupar o espaço original dos apartamentos. Maxim fez a reforma. É ele quem me mostra o apartamento quando chego para o jantar de aniversário da Natália. É a primeira vez que ouço gente falando mal de São Petersburgo, em São Petersburgo. É verdade que quase todos são moscovitas expatriados. Sônia, com uma barriga de oito meses, me diz que já não consegue nem admirar a beleza da arquitetura. A única coisa que ela vê é a depressão no rosto das pessoas no metrô. “Esta cidade faz parte do mundo de Kafka.” Roman também só pensa em sair daqui. Quer ir para Moscou. A família veio de Vladivostok quando ele era pequeno. “Bastou eu descer o primeiro degrau da estação de trem para entender que não podia viver aqui.” E desde então é onde segue vivendo. Quando pergunto a Natália se não é complicado namorar alguém em Moscou e viver em Petersburgo, e por que ela não volta para Moscou, ela sorri e aponta para a janela, e para o apartamento. De fato, eu não trocaria essa vista por nenhuma outra. Como o ser humano é o mesmo em qualquer lugar, depois de vários brindes (primeiro para a aniversariante, depois para os pais da aniversariante e assim por diante até todo mundo já ter sido homenageado e estar mais ou menos alto), alguém propõe brincar de mímica. Perguntam se eu conheço as regras do jogo. Em um segundo, a sala é dividida em dois times e, para o meu horror (por pura gentileza dos anfitriões), descubro que faço parte de um deles. Mais louco do que ver e ouvir as pessoas brincando de mímica (todo mundo sabe que o integrante de um grupo deve conseguir fazer seus parceiros adivinharem a palavra que o grupo adversário lhe confidenciou) em russo, é ter de participar da brincadeira sem falar uma palavra de russo. Quando chega a minha vez, fazem a gentileza de sussurrar no meu ouvido, em inglês, uma palavra tão fácil (“revolução”) – quando todas as outras eram abstrações impossíveis de representar, que os convidados passavam horas tentando decifrar às gargalhadas –, que basta levantar o punho fechado para imediatamente um dos meus parceiros gritar “revolução”. Antes de eu sair, no final da noite, Roman me pergunta se já fui aos “guetos”. Está se referindo ao final das linhas do metrô, onde ficam os conjuntos habitacionais construídos pouco antes do fim do comunismo. Quando chegaram à cidade, Roman e sua família foram morar num desses bairros. Depois, se mudaram para um apartamento comunitário na ilha de Vassiliévski, onde ainda vivem. Dá para entender a impressão que ele tem da cidade. No dia seguinte, Roman acompanha nossa equipe (o Tadeu, que está aqui fazendo um documentário sobre o Amores Expressos, seu escudeiro Sasha, que é um petersburguês militante, e eu) até Kupchino. E, por incrível que pareça, é entre essa sucessão deprimente de enormes blocos de apartamentos, alguns em estado avançado de decrepitude, margeando uma imensa avenida, um mundo na maior desolação, que pela primeira vez reconheço a vida que eu procurava para o meu romance, a do outsider, que de alguma maneira tem a ver com a minha própria experiência na cidade e é a única que eu consigo entender. Não é idealização da miséria (não é propriamente miséria, como no Brasil – Roman diz que Kupchino é o menos horrível desses subúrbios). Pode soar imoral (certamente, porque não moro aqui), mas reconheço algum tipo de beleza nos garotos que jogam futebol na quadra de cimento no meio dos prédios, no imigrante do Uzbequistão que nos diz que um dia o mundo há de ser melhor e no pai sem camisa, fumando, com a filha pequena ao lado, no alto da escada de incêndio de um desses prédios monstruosos, numa tarde de domingo, debaixo do céu azul. E na escada de incêndio enferrujada e coberta de roupas, tapetes, lençóis e toalhas, a secar do lado de fora. Amanhã, vou embora de São Petersburgo, logo quando começava a entender alguma coisa. E, antes de partir, decido voltar pela terceira vez ao metro quadrado mais bonito do mundo. A sala 344 do Hermitage, onde estão a “Música” e "Ninfa e Satiro", entre outros quadros do Matisse. Só para sair da cidade com a melhor das impressões.