amores expresos

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Avenida Niévski










Estou há uma semana num apartamento da avenida Niévski, em São Petersburgo. Vou ficar um mês. A Niévski é a principal avenida da cidade e uma das mais célebres da literatura mundial, imortalizada no conto homônimo de Gógol, publicado em 1835, e de lá para cá citada em quase todo romance ambientado na cidade.
O narrador das “Memórias do Subsolo”, de Dostoiévski, se vê arrastado para lá, para ser humilhado. No século 19, a Niévski representava tudo o que São Petersburgo, uma cidade planejada, como Brasília, e construída à força, há 300 anos, queria ser: cosmopolita, européia, um porto para a civilização e a modernidade numa Rússia em geral atrasada e bárbara. E, de fato, com a construção da cidade nascia também a possibilidade da própria literatura russa.
Para ser cosmopolita, a Niévski tinha que ser ao mesmo tempo mundana, consumista (um dos primeiros shopping centers do mundo foi construído aqui, em 1757) e mercantilista, como assinala o conto de Gógol; tinha de acolher todas as classes e todos os tipos: dos nobres, militares e funcionários à escória da sociedade; das famílias distintas, durante o dia, às prostitutas à noite.
Hoje, a Niévski, de resto como as outras vias principais da cidade, é uma sucessão de belas fachadas iluminadas (ou em obras), encobrindo pátios e fundos decrépitos. A minha experiência na Niévski foi selada no terceiro dia na cidade. E, ao contrário do personagem de Dostoiévski, agora faço qualquer coisa para evitá-la.
Sem internet em casa, tenho de levar o meu computador ao cybercafé mais próximo, que fica a cerca de um quilômetro, descendo a Niévski. Nos dois primeiros dias, tudo correu muito bem. Meu computador é mínimo, de modo que cabe numa pequena mochila sem fazer vista. Eu já estava começando a me sentir um morador de São Petersburgo, com hábitos e vida cotidiana, quando fui obrigado a me render ao estigma do turista.
Voltando do cybercafé, às seis da tarde, dia claro, com a avenida apinhada de gente saindo do trabalho, percebo de repente três homens, todos mais altos e mais fortes que eu, confabulando atrás de mim. Resolvo parar por um instante, fingir que estou procurando alguma coisa, e deixá-los seguir em frente. Os três continuam uns metros e param também. Eu avanço, passo por eles. Eles retomam o passo. Eu paro de novo, volto atrás. Eles param e voltam atrás. Entendo que estou ferrado. Não tenho a quem recorrer, mesmo com a avenida cheia de gente. Não falo russo, não há policiais. Resolvo apertar o passo. Estão sempre atrás de mim ou ao meu redor. Estão na minha cola. Penso em entrar em algum lugar, mas tudo pode servir de armadilha.
Petersburgo não é lugar para um estrangeiro sozinho (tampouco São Paulo deve ser). A polícia é uma ameaça. Há sempre alguém pronto para reconhecer e atacar a vulnerabilidade onde quer que ela se manifeste. Quer melhor presa para as gangues da avenida Niévski do que um estrangeiro desacompanhado? Fiquei aterrorizado pela consciência do meu lugar de vítima, tentando escapar em vão ao balé que se armava à minha volta, com os três que se separavam e se reagrupavam num cerco mal dissimulado. Eu desviava, parava, avançava e retrocedia, e os três correspondiam aos meus movimentos. Só a voracidade do roubo podia cegá-los para o fato de que eu já tinha compreendido tudo e estava desesperado, como a presa consciente da iminência do ataque. Ou talvez isso os incitasse. Para mim, o mais incompreensível era que tivessem me escolhido no meio de tanta gente e que estivessem determinados. Não iam desistir enquanto não terminassem o serviço.
Estava pronto para começar a correr, quando olhei para trás mais uma vez. Como num passe de mágica, um dos três já estava com o meu computador na mão, a mochila aberta. Por sorte, eu tinha prendido o estojo do computador num gancho para chaves no interior da mochila, de modo que o sujeito não conseguia soltá-lo. Arranquei o computador da mão dele e comecei a gritar “polícia!” (militsia), com o dedo em riste. Ninguém fazia nada. O ladrão, inconformado, ainda gritou alguma coisa, tentando me intimidar, mas, diante da minha ênfase, desapareceu no meio da multidão, como os outros.Desde então, já não saio com nada. Reconheço o facínora até no técnico que vem consertar a televisão. Todos os guias da cidade alertam sobre o crime. Achava que fosse exagero. São Petersburgo foi construída com muito sangue, como parte de um processo civilizatório imposto e violento. O resultado, 300 anos depois, é uma cidade com fachada européia e índole de Terceiro Mundo.

6 Comentários:

Blogger Unknown disse...

Caro Bernardo Carvalho,

entediado com a Folha de S.Paulo a minha frente, suspirei de esperança quando vi o título de sua coluna nesta terça, na última página da "Ilustrada". Sou apaixonado pela cultura russa e vi em seu texto a possibilidade de sentir algum prazer lendo aquele amontoado de palavras industrialmente padronizado que, confesso, até então me havia feito cair no sono duas vezes.

Lembrava mais do Nievá pela literatura russa, mas foi interessante conhecer a avenida Niévski. Aos poucos, porém, fui me irritando com seus comentários após o episódio do quase roubo de seu computador. Imaginei que, assim como você cita São Paulo, São Petersburgo (cidade pela qual tenho fascínio) não poderia ser a culpada da situação pela qual você passou e que parece óbvio falar das características "terceiro-mundanas" da "mais premeditada das cidades".

Ao terminar o texto, parei, na desorganizada cama de minha quitinete - não tão sombria e pequena como a de Raskólnikov - para refletir sobre a mistura de emoção e repúdio que o texto me causou. "Puxa... eu quero muito morar em São Petersburgo. E ele me vem com uma dessas...", pensei.

Foi então que reparei, rindo, o quanto meu sonho era utópico e infantil (não o de morar em São Petersburgo, o que ainda pretendo realizar, mesmo por alguns dias, mas o de querer que fosse uma bela cidade, ou boa para se morar). Dostoiévski já enumerava as contradições da cidade no século XIX; contradições que, sabemos, atinge toda a Rússia, nesse eterno debate por se abrir ao mundo, função inicial de São Petersburgo, e que até hoje é algo mambembe.

Acho que é por essa contradição que adoro a Rússia, refletida em mim através de meus argumentos e dos sentimentos que seu texto despertou. Afinal, "acho porque acho. Depois arranjo os argumentos".

Toda essa enrolação para, por fim, agradecer seu texto, que possibilitou, sim, prazer e emoções ao ler. E invejo, ainda que com os incidentes por você reladaos, sua estada em São Petersburgo. Continue escrevendo. Apenas hoje descobri seu blog.

De Dalmo Borba
(estudante de jornalismo cuja professora de redação de amanhã é apaixonada pelos textos do "garoto" Bernardo Carvalho, e que me despertou para sua literatura)

11 de setembro de 2007 às 12:52  
Blogger Laís disse...

oi!!!
então...
que coisa ruim isso..
de verdade...
mas... isso não te despertou nenhuma idéia para o livro?
foi emocionante...


bjjjsss

11 de setembro de 2007 às 15:25  
Blogger Paulodaluzmoreira disse...

Vc vai me desculpar, mas a sua visão do que seja um país de primeiro mundo é de uma ingenuidade tremenda. Qual é a cidade que não foi “construída com muito sangue”? Paris? Essa selvageria que vc indica como sendo “índole de terceiro mundo” está viva e atuante em qualquer cidade grande [Londres, Paris e Nova Iorque inclusive]. O fato de um eurocentrismo desse vir de um brasileiro ainda acentua o ridículo da coisa toda. Acorda, Bernardo!

13 de setembro de 2007 às 14:22  
Blogger Dora disse...

Bernardo,

Lendo este post fiquei com duas dúvidas: você conhece algum processo civilizatório que não tenha sido imposto e violento? Depois, gostaria sinceramente de saber o que você entende por "índole de terceiro mundo"? Pergunto porque, em primeiro lugar, a miséria no terceiro mundo é um dos desdobramentos dos processos colonizadores, da escavidão e do tráfico de escravos, mesmo no México e em Cuba que fizeram suas revoluções. Depois, você parece desconsiderar o peso de uma revolução que abalou o mundo, após 1917, e a possibilidade da tentativa de assalto ser um dos desdobramentos do fim do stalinismo e da guerra fria, que pariram outro tipo de miséria. São processos históricos absolutamente distintos. Acho que se você escolheu trilhar o caminho da análise com verniz crítico, aproveita a oportunidade in loco para fazê-la com propriedade. A rima é infame, eu sei, mas o viés classe-média baixo gávea parece pior.

13 de setembro de 2007 às 22:03  
Blogger Maria Guimarães disse...

o que eu realmente quero saber é como eles conseguiram o tal passe de mágica - você atento a cada movimento deles, correndo para lá e para cá, e mesmo assim de repente a mochila está aberta e o computador por um fio?!?!
acho que essa história já é ficção...
beijo!

26 de setembro de 2007 às 12:21  
Blogger Diana Menasché disse...

Esse site é irado!

2 de fevereiro de 2008 às 19:15  

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