amores expresos

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Brincando de mímica em russo




Júlia e Natália são agentes literárias. Júlia nasceu em São Petersburgo. Natália é de Moscou. Mudou-se para a cidade porque o marido era daqui. Acabou ficando, mesmo depois de se separar. O namorado, Maxim, é arquiteto em Moscou. Compraram um apartamento no último andar de um prédio antigo no canal Griboiédova, com vista para o teatro Mariinski, a cinqüenta metros de onde Dostoiévski teria imaginado a casa da usurária de “Crime e Castigo”. Deve ser uma das vistas mais sensacionais do mundo. O apartamento não fica atrás. Durante o comunismo, serviu de “moradia comunitária” – um eufemismo para velhos apartamentos convertidos em cortiços, abrigando várias famílias, cada uma em um quarto, com banheiro e cozinha comuns. Essa era a regra no centro histórico da cidade durante o período soviético. Com o plano de privatização, quem tinha dinheiro foi comprando quartos – e realocando as famílias em outras moradias – até reconstituir e ocupar o espaço original dos apartamentos. Maxim fez a reforma. É ele quem me mostra o apartamento quando chego para o jantar de aniversário da Natália. É a primeira vez que ouço gente falando mal de São Petersburgo, em São Petersburgo. É verdade que quase todos são moscovitas expatriados. Sônia, com uma barriga de oito meses, me diz que já não consegue nem admirar a beleza da arquitetura. A única coisa que ela vê é a depressão no rosto das pessoas no metrô. “Esta cidade faz parte do mundo de Kafka.” Roman também só pensa em sair daqui. Quer ir para Moscou. A família veio de Vladivostok quando ele era pequeno. “Bastou eu descer o primeiro degrau da estação de trem para entender que não podia viver aqui.” E desde então é onde segue vivendo. Quando pergunto a Natália se não é complicado namorar alguém em Moscou e viver em Petersburgo, e por que ela não volta para Moscou, ela sorri e aponta para a janela, e para o apartamento. De fato, eu não trocaria essa vista por nenhuma outra. Como o ser humano é o mesmo em qualquer lugar, depois de vários brindes (primeiro para a aniversariante, depois para os pais da aniversariante e assim por diante até todo mundo já ter sido homenageado e estar mais ou menos alto), alguém propõe brincar de mímica. Perguntam se eu conheço as regras do jogo. Em um segundo, a sala é dividida em dois times e, para o meu horror (por pura gentileza dos anfitriões), descubro que faço parte de um deles. Mais louco do que ver e ouvir as pessoas brincando de mímica (todo mundo sabe que o integrante de um grupo deve conseguir fazer seus parceiros adivinharem a palavra que o grupo adversário lhe confidenciou) em russo, é ter de participar da brincadeira sem falar uma palavra de russo. Quando chega a minha vez, fazem a gentileza de sussurrar no meu ouvido, em inglês, uma palavra tão fácil (“revolução”) – quando todas as outras eram abstrações impossíveis de representar, que os convidados passavam horas tentando decifrar às gargalhadas –, que basta levantar o punho fechado para imediatamente um dos meus parceiros gritar “revolução”. Antes de eu sair, no final da noite, Roman me pergunta se já fui aos “guetos”. Está se referindo ao final das linhas do metrô, onde ficam os conjuntos habitacionais construídos pouco antes do fim do comunismo. Quando chegaram à cidade, Roman e sua família foram morar num desses bairros. Depois, se mudaram para um apartamento comunitário na ilha de Vassiliévski, onde ainda vivem. Dá para entender a impressão que ele tem da cidade. No dia seguinte, Roman acompanha nossa equipe (o Tadeu, que está aqui fazendo um documentário sobre o Amores Expressos, seu escudeiro Sasha, que é um petersburguês militante, e eu) até Kupchino. E, por incrível que pareça, é entre essa sucessão deprimente de enormes blocos de apartamentos, alguns em estado avançado de decrepitude, margeando uma imensa avenida, um mundo na maior desolação, que pela primeira vez reconheço a vida que eu procurava para o meu romance, a do outsider, que de alguma maneira tem a ver com a minha própria experiência na cidade e é a única que eu consigo entender. Não é idealização da miséria (não é propriamente miséria, como no Brasil – Roman diz que Kupchino é o menos horrível desses subúrbios). Pode soar imoral (certamente, porque não moro aqui), mas reconheço algum tipo de beleza nos garotos que jogam futebol na quadra de cimento no meio dos prédios, no imigrante do Uzbequistão que nos diz que um dia o mundo há de ser melhor e no pai sem camisa, fumando, com a filha pequena ao lado, no alto da escada de incêndio de um desses prédios monstruosos, numa tarde de domingo, debaixo do céu azul. E na escada de incêndio enferrujada e coberta de roupas, tapetes, lençóis e toalhas, a secar do lado de fora. Amanhã, vou embora de São Petersburgo, logo quando começava a entender alguma coisa. E, antes de partir, decido voltar pela terceira vez ao metro quadrado mais bonito do mundo. A sala 344 do Hermitage, onde estão a “Música” e "Ninfa e Satiro", entre outros quadros do Matisse. Só para sair da cidade com a melhor das impressões.

sábado, 29 de setembro de 2007

Os bons sentimentos





“A Gaivota”, de Tchécov, foi vaiada na estréia, em São Petersburgo, no teatro Alexandrinski. Só por fetichismo (mais para ver o teatro do que a peça), vou ao Alexandrinski assistir a uma montagem penosa do “Quarteto”, de Heiner Muller, por uma companhia francesa. Para compensar, dois dias depois, assisto à “Peça sem Nome” (“Platonov”), de Tchécov, encenada por Lev Dodin, no teatro Mali. A montagem tem dez anos e foi integrada ao repertório do teatro. Tem um ar ligeiramente ultrapassado, que garante metade do charme – e da nostalgia. O cenário é uma casa de campo às margens de um rio. Os atores interpretam boa parte do texto molhados – ou se enxugando. Volta e meia, alguém se joga nas águas de uma piscina que representa o rio entre o palco e a platéia. Dodin é um mestre da graça e da competência. O Mali é o único representante russo entre as companhias que formam o prestigioso Teatro da Europa. Pode não ser a coisa mais inovadora do mundo, mas é bem feito e celebra uma alegria e um gosto pelo teatro que faz a platéia voltar à infância. E isso desde os atores até a velhinha que vende programas na entrada, com uma dedicação militante, e que me pergunta qual é o meu lugar na platéia quando lhe peço um programa em inglês (que, infelizmente, ela não tem). Devo ser o único espectador estrangeiro. Logo antes de começar a peça, ela entra na sala e vem até o meu lugar para dizer que posso ficar sossegado: vão pôr legendas em inglês para mim.



Começo a me dar conta de outra São Petersburgo. Em parte, graças ao Maxim, que é um sujeito muito peculiar. Passei quase um mês me debatendo contra os clichês turísticos (e tentando evitar o que eu não poderia deixar de ser) numa cidade onde as atrações turísticas se sucedem ao infinito, com intervalos de menos de cinqüenta metros entre uma e outra. Não queria a beleza evidente das fachadas nem a instituição da cultura independente (DJs, rock alternativo, música eletrônica) que, pelo que dizem, já foi mais independente e menos institucional. Como quase tudo no mundo, aqui também, o que num momento foi resistência acabou tendo de se render ao comércio. O Maxim não. Estudou cinema, em Moscou, com Marlen Huciev, cineasta soviético contemporâneo de Tarkovski. Uma noite, no hotel, em Moscou, liguei a TV e dei com a cena de um filme em preto e branco, dos anos 60, em que um grupo de jovens (Tarkovski entre eles) falava alto, recitava poemas, dançava, e passava do riso ao choro sem tomar fôlego, como parece ser costume entre os russos, bipolares intempestivos. Como não falo russo, não entendi bulhufas do que diziam. Mas tampouco consegui desgrudar os olhos da TV. A cena era estonteante. Era incrível que aquele filme tivesse sido feito na União Soviética dos anos 60. A influência da nouvelle vague era clara. Mas havia outra coisa, uma melancolia, um peso, um desencanto, que os filmes da nouvelle vague não têm. Só ontem, o Maxim me esclareceu que a cena que eu vi é de um filme célebre do Huciev. O Maxim é um cara sabido e estranho. Mora num apartamento não muito longe de onde os turistas e os fãs de “Crime e Castigo” vão fotografar “o prédio onde morou Raskolnikov”. O próprio Maxim é uma espécie de Raskolnikov tranqüilo, se isso for possível. É magro, usa barba e rabo-de-cavalo. Fez um documentário que reúne personagens reais de São Petersburgo, história pessoal e animação. Há alguns anos, o filme foi exibido no festival de Berlim. A única cópia que ele tem não é boa e está sem legendas. Nessas condições, prefere que eu não a veja. Publicou poemas em edições independentes. Já não publica. Me mostra o livro de um poeta de Petersburgo, que se matou jovem, nos anos 70, Leonid Aronzon, e que ele admira. Desde agosto, o Maxim trabalha na agência central do correio, por onde passa toda a correspondência da cidade. Fazendo o quê? “Trabalho físico.” Por quê? “As cartas me interessam. O correio me interessa. Queria ver como era. Talvez venha a fazer um filme. Enquanto isso, aproveito para ganhar algum dinheiro.” Marcamos um encontro no saguão art nouveau, coberto por uma imensa clarabóia, da agência central do correio. Quando estudava cinema em Moscou, o Maxim sentiu falta de um curso de interpretação e dança e foi parar no teatro onde uma amiga comum, Marina, é atriz. Daí o contato. Ele me convida para tomar café no apartamento dele. Me mostra um vídeo no qual dança sozinho, diante de uma pequena platéia. É a dança mais esquisita do mundo, concebida por ele durante o curso em Moscou. O apartamento é típico de velhos intelectuais sob o regime soviético. Como se tivesse sido esquecido no tempo. Lembra a casa de Anna Akhmátova, que hoje é museu, só que mais desarrumado. É sombrio. O papel de parede é sujo e velho. O divã na sala está coberto com um tapete vermelho. Há um piano maltratado, uma estante desengonçada, livros espalhados, alguns retratos, desenhos descolando das paredes, cortinas velhas de renda nas janelas. Os avós deixaram o apartamento para ele. Conversamos sobre cinema e literatura. Maxim tem um compromisso, mas insiste em me acompanhar até em casa. No caminho, pergunta o que é que eu fiquei fazendo durante um mês sem conhecer ninguém em São Petersburgo. “Andando.” Ele só falta chorar. Três horas depois, me liga para dar o telefone da amiga de uma amiga, que estudou português na universidade e que eu não posso deixar de conhecer.

domingo, 23 de setembro de 2007

O idiota sou eu




Voltei para o meu internato de São Petersburgo. Graças a outra conexão francesa, saio para almoçar com Macha, na esperança de fazer contatos na cidade. Ela está em São Petersburgo por um dia. Vive em Moscou. É gerente de uma rede de três restaurantes franceses e uma loja. Uma vez por mês, vem fazer a inspeção da filial petersburguesa do restaurante, na ilha de Petrogradski. Macha nasceu no Quirguistão. Com a miséria que se seguiu ao fim do comunismo, os pais se mudaram para o Cazaquistão e ela foi para Moscou terminar a faculdade de medicina. Acabou gerente de restaurante. Durante o almoço, liga para seus contatos na cidade. Me dá os telefones de Dima (Dimitri) e de Tatiana. Dima é aspirante a fotógrafo e videomaker. Adora música eletrônica e Mickey Rourke. Ganha a vida como intérprete/tradutor, guia turístico e, eventualmente, faz produção de cinema – diz que trabalhou na “Arca Russa”, de Sokurov. Quer saber do romance que estou imaginando. Quando conto por alto a idéia, ele jura que não é homofóbico – o que me causa má impressão. E me confirma o que eu já sabia: que todos os bares e clubes interessantes da cidade ficam em volta da minha casa – mas que não há nada extraordinário acontecendo em São Petersburgo. Almoço com Tatiana no sábado. Ela é jornalista. Trabalha para a televisão (contanto que não se fale de política, não há censura). Faz matérias de moda e variedades e se veste como quem faz matéria de moda. É formada em literatura francesa, com dissertação sobre Nathalie Sarraute. Só para confirmar a regra, Tatiana não gosta de Moscou. Lá, as pessoas vivem correndo. Os petersburgueses, ao contrário, dão tempo ao tempo. Conta que até os sessenta anos (ou mais) sua tia fazia um buraco no gelo e mergulhava nua nas águas glaciais do rio Nieva, bem no centro da cidade, em pleno inverno (“Nua, é claro, porque de maiô podia pegar uma pneumonia!”). Diz que ainda há quem faça isso. Tatiana me explica que as coisas em São Petersburgo estão menos à vista do que em Moscou. As pessoas se encontram nas casas umas das outras. Resultado: continuo sozinho. À noite, vou ver o balé Forsythe, no Mariinski. Volto de ônibus. Passo pelo supermercado para comprar alguma coisa para comer, mas o supermercado está fechado. Há um restaurante asiático não muito longe de casa, que esteve na moda há três anos e agora está quase sempre às moscas. A comida não é de todo ruim e o serviço é simpático. Escolho uma mesa na área de não-fumantes, peço o prato e pego o programa do Mariinski para ler enquanto espero. De repente, sinto que alguém sentou na cadeira que dá as costas para a minha. Como o casaco do sujeito, sobre o encosto da cadeira dele, fica batendo no meu, sobre o encosto da minha cadeira, empurro a mesa para a frente e afasto a minha cadeira da dele. Continuo a ler. Percebo que o homem não pára quieto atrás de mim, e não pára de mexer no casaco. Também discute alguma coisa com a garçonete. Quando ele se levanta para ir ao banheiro, uma das garçonetes se aproxima e fala comigo em russo. Digo que não entendo e ela passa para um inglês precário, mas plenamente compreensível. Muito sem graça, pede que eu troque de mesa. Não entendo. Ela insiste, apontando para a cadeira vazia atrás de mim: “Bad man”. Sorrio e concordo. Pego minhas coisas e me levanto, ainda sem entender direito. Num primeiro momento, acho que o sujeito é algum tipo de bêbado idiossincrático, e que pediu que me removessem do entorno. Tudo bem. No caminho para a outra mesa, no entanto, me dou conta de que todas as garçonetes me observam, constrangidas. Uma delas pede que eu verifique se não sumiu nada dos bolsos do meu casaco. E aí cai a ficha. Não é possível. É lógico que tudo não passa de uma enorme coincidência. Evito tirar conclusões apressadas sobre a recorrência da tentativa de roubo em São Petersburgo (de fato, poderia acontecer em qualquer cidade do mundo). Devo ter a maior pinta de otário. Só pode ser isso. O efeito, entretanto, é incrível. Parece piada, pegadinha ou pesadelo. Mudo de mesa, mas continuo à vista do sujeito, que não pára de me olhar depois da decepção de voltar do banheiro e não me encontrar mais ao alcance da mão. Finjo que não estou vendo. Chega o meu prato. Começo a comer. E o sujeito, na maior cara-de-pau, sai da sua mesa, do outro lado do restaurante, e vem se instalar, de novo, na cadeira bem atrás da minha, na área de fumantes (e aqui ele começa a fumar). Não posso crer. As garçonetes, a gerente e o segurança do restaurante tampouco. Eu me levanto, furioso (estou começando a perder a paciência), tiro meu casaco do encosto, e me sento na cadeira do outro lado da mesa. Agora, posso ver o sujeito de costas. A julgar pela desfaçatez, ele será capaz de tudo. Garçonetes, gerente e segurança também aguardam, com expressões de alarme, o próximo passo. Mas o homem acaba de beber, pega o casaco, se levanta e sai do restaurante sem dizer nada. Pergunto às garçonetes o que houve, mas todas sorriem amarelo e desconversam. Enquanto eu janto, volta e meia o segurança vai até a calçada verificar se o homem foi mesmo embora. Quando afinal saio do restaurante, não há ninguém na rua. Já me disseram que sou paranóico. Se a minha paranóia for capaz de criar situações como as que tenho vivido desde que pisei em São Petersburgo, então devo estar desperdiçando os meus poderes paranormais.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Bani



Passei cinco dias em Moscou. Fui entrevistar Valentina Melnikova, presidente do Comitê das Mães dos Soldados, uma das ONGs mais combativas durante os anos Putin. A narradora do meu romance deve ser uma dessas mães. Os poucos petersburgueses com quem falo de Moscou torcem a cara. Moscou é cosmopolita. Os petersburgueses dizem que Moscou é violenta, dura e feia. É aqui, em São Petersburgo, uma cidade bem mais turística e provinciana, que acontecem os piores ataques (em geral, não reprimidos) dos skinheads neonazistas, contra gays e estrangeiros (sobretudo do Cáucaso e das ex-repúblicas soviéticas). Em Moscou, ninguém olha para ninguém. Há gente de toda parte e coisas acontecendo em toda parte. As cidades são as pessoas que você conhece. Conheci o Ilya por intermédio de uma prima dele que mora na França. O Ilya nasceu e vive desde sempre em Moscou. A família está na cidade desde que foi permitido aos judeus viver ali, depois da revolução de 17. Ele fala inglês sem nenhum sotaque. Agradece a uma ex-namorada americana. Pede desculpas pelo atraso de mais de uma hora. Estava jogando badminton, perdeu a primeira partida, pediu uma revanche e continuou perdendo até perder a hora. Me leva para jantar num restaurante moderninho e simpático, escondido no fundo de um pátio, num subsolo atrás de uma porta de ferro com um sinal discreto e mal-iluminado. Feito para não se achar. O lugar faz parte de uma cadeia e pertence a uma editora. Não há menu em inglês – o que faz toda a diferença (para o bem e para o mal). Pedimos vodca e, depois do brinde, com expressão aterrada, Ilya me interpela: “Não é assim que se bebe”. A etiqueta russa manda beber de um gole só. Explico que ele vai ter que se acostumar: cada um bebe como quer. É ainda sobre etiqueta que terminamos conversando na saída. Durante o jantar, ele me disse que eu não podia ir embora sem passar por uma “bania”. Eu já estava com isso na cabeça desde que pisei na Rússia. As “bani” são as tradicionais casas de banhos, uma espécie de sauna pública. No passado, era onde as pessoas se lavavam, uma vez por semana. A Sanduni, a “bania” mais tradicional de Moscou, fundada em 1896, fica a uns duzentos metros do restaurante onde estamos. As portas se fecham às dez da noite, mas o Ilya faz questão de me levar até lá, antes de voltar para casa, para eu aprender o caminho. Explica os detalhes, como é que eu devo me comportar lá dentro. Deve ter percebido a minha hesitação, porque no dia seguinte, na hora do almoço, me manda um torpedo: “Meu amigo Fedya está louco pra te conhecer. Olha só que coincidência: ele também vai à bania hoje. Que tal às duas? Ele vai te ligar”. Logo eu ia descobrir 1) que o Fedya não é amigo do Ilya, mas primo, e 2) que ele não estava nem um pouco louco para me conhecer (era só mais uma gentileza do Ilya). Meia-hora depois, recebo o telefonema do Fedya: “Te espero às duas, na porta. Vou levar uns chinelos pra você, por causa dos fungos. Ah! E não se esqueça: você vai me chamar de Fed”.
Fed é cameraman. Às duas e meia, na porta da “bania”, ele me apresenta Andrei, com quem trabalha nas filmagens de uma ficção-científica, com locações em São Petersburgo (passaram quatro meses na cidade, por conta do filme), no Mar Negro e em alguma praia da Itália que ele ainda não conhece. Os dois vêm carregados de sacolas. Pagamos as três entradas e subimos as escadas. No andar de cima, há um salão, com pé-direito alto, dividido em dois grandes ambientes. Há bancadas de madeira e estofamento de couro, com porta-casacos acima de cada assento. Podia muito bem ser um restaurante tradicional de gare de uma grande capital européia. A única diferença é que os clientes estão nus. Muitos são gordos e peludos. Às vezes, é uma família inteira: o avô, o pai e os filhos pequenos. Estão sentados nas bancadas de couro, comendo, debruçados sobre as mesinhas. Alguns estão enrolados em lençóis. A circulação é grande. Só o garçom atrás do bar, os atendentes e o gerente estão vestidos. Fed pede uma toalha, um lençol e um chapéu de feltro para mim. É um chapéu em forma de campânula, sem o qual é humanamente impossível entrar no que só se pode chamar de sauna por eufemismo – ou por sacanagem. Do lado do bar, há uma geladeira com tampo de vidro, dessas em que se armazena sorvete, com ramos de bétula seca plastificados a vácuo e congelados. Fed trouxe os seus feixes de casa. Ele os tira da sacola e me mostra. Também me entrega os chinelos de plástico. Nos despimos, deixamos a roupa e as toalhas na bancada e nos enrolamos nos lençóis. Fed aponta para o meu chapéu de feltro, que traz a insígnia da Sanduni estampada com endereço e telefone. Manda eu enfiá-lo na cabeça. Fed e Andrei também enfiam os seus chapéus na cabeça. Estão munidos com os ramos de bétula. Entramos na sala dos banhos. É um ambiente enorme, com pé-direito igualmente alto, e uma grande variedade de duchas e chuveiros (com balde de madeira no alto, jato único, jato múltiplo etc.). A atmosfera é de tradicional decadência. Há uma piscina de água gelada no alto de uma escada. Homens, velhos e crianças circulam por todos os lados. Uns esfregam e ensaboam os outros. Há muitas bacias de plástico espalhadas com ramos de bétula de molho. Andrei procura uma vazia para meter os feixes que trouxeram de casa. Seguimos em linha reta até a porta aberta no fundo da sala. É a entrada do inferno. Na porta, um homem gordo e peludo joga água dentro de uma fornalha. O calor é tão grande, que não só a porta mas também uma das janelas, que dá para a rua, têm de ficar abertas. Dentro da sala da fornalha, há uma escada em forma de arquibancada, que leva a um mezanino, aonde só se consegue chegar curvado – o infeliz que se mantiver ereto arrisca a pôr a cabeça em estado de incandescência. Daí o capuz de feltro. Todos têm os seus enfiados até os olhos. Alguns são personalizados. Há o sujeito que prefere usar um velho chapéu soviético, com a estrela vermelha na testa, e outro que entra com elmo de viking, com um chifre de feltro de cada lado. Ficamos sentados num banco no alto, curvados, gemendo, tapando o rosto com as mãos (é difícil abrir os olhos ou respirar sem a impressão de estar incendiando por dentro). Depois de alguns minutos, Fed diz “out”, e nós três saímos para os chuveiros. Volto a encontrá-los, sentados na bancada de couro do restaurante, enrolados nos lençóis. Fed quer saber da tentativa de roubo em São Petersburgo (soube por alto, pelo primo). Eu faço o relato. Ele começa a rir. Traduz para Andrei, que não fala inglês, às gargalhadas. Andrei também ri. Fed me pergunta o que aconteceria no Brasil, se eu tomasse meu computador de volta da mão do ladrão. Digo que, possivelmente, levaria um tiro. Fed cai de novo na gargalhada. Traduz para Andrei. Os dois riem a valer. Entramos de novo na sala dos banhos. Fed pega um maço de ramos de bétula da nossa bacia, uma entre dezenas, e nos dirigimos à sauna. Subimos ao alto da arquibancada e nos sentamos. De repente, um homem começa a se bater com o ramo de bétula. Outros começam a fazer o mesmo e em poucos minutos a sauna inteira está contagiada por uma coreografia de automutilação. Fed começa a rir. Alguns cobrem o rosto com os feixes da planta, depois de já terem abanado o corpo inteiro com ela. Outros se deitam de bruços nos bancos, nus, enquanto os amigos lhes infligem golpes nas costas, nas nádegas, nas pernas e nas solas dos pés. Um homem muito gordo bate em outro, deitado no banco. De repente, o que está apanhando levanta a cabeça, indignado, e reclama que o amigo não está batendo com força. Aponta para o próprio ombro direito enquanto faz a reclamação. O amigo retoma os golpes com mais violência. Fed também se deita e pede para Andrei espancá-lo. Quando acaba a sessão, voltamos para o chuveiro e para a sala do restaurante. Fed continua com folhas de bétula coladas pelo corpo. Andrei tira um peixe inteiro da frasqueira e começa a cortá-lo em rodelas sobre a mesa. O garçom vem servir chá. Enquanto os dois comem o peixe, pergunto a Fed se ele gosta dos filmes de Sokurov. Ele faz uma careta. Pergunto que tipo de filme eles estão fazendo. “Uma coisa entre o blockbuster e os filmes de festivais”, diz Fed, e cai de novo na gargalhada. É a história de uma experiência científica secreta realizada há vinte anos, em São Petersburgo, diz. Um grupo de cientistas consegue criar o protótipo de um ser humano que sobrevive debaixo d’água, até que o experimento é interrompido pela KGB. Vinte anos depois, os cientistas começam a morrer, assassinados, um depois do outro. Fed diz que é hora de voltarmos para a sauna. Pergunta se eu quero apanhar. Por que não? E é aí que eu descubro a graça da surra. O efeito é provocado menos pela força das batidas do que pelo vento que vem com o golpe e que faz o corpo pegar fogo, como quando você insufla uma fogueira. Saímos mais uma vez para os chuveiros e o restaurante e quando voltamos pela última vez à sala da fornalha é para espancar o Andrei. Fed e eu batemos com toda a força, num movimento cadenciado, até ficarmos exaustos. Passamos pelos chuveiros, nos vestimos, pagamos a conta no caixa e, quando nos despedimos do lado de fora, Fed me estende a mão e diz: “Bernardo, now, you family, you brother”.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Só chego atrasado


A porta do meu apartamento, com lâmpada em curto



Descubro com três dias de atraso, lendo o St Petersburg Times, o semanário local em inglês, que o enxadrista campeão mundial e atual líder de oposição Garry Kasparov veio a São Petersburgo participar de um protesto ao lado de cinco mil pessoas contra o projeto de construir um arranha-céu monstro para sediar a gigante Gazprom no centro histórico da cidade. No mesmo dia, 120 casais de jovens, convocados por meio de torpedos de celular, se reuniram na esplanada do Palácio, em frente ao Hermitage, para se beijar, todos ao mesmo tempo. Não vi nenhum dos eventos, mas a quase simultaneidade dos dois dá uma boa medida do que é a Rússia hoje. No domingo à noite, uma carreata de jovens, com bandeiras negras (algumas com caveiras) e as namoradas louras penduradas e gritando das janelas dos carros, passou buzinando pela Niévski. Deve haver mesmo coisas geniais acontecendo em São Petersburgo. Pena que eu não as vejo. Tenho a impressão de estar passando ao largo (ao menos, consegui comprar ingressos para a apresentação única do balé Forsythe no teatro Mariinski e para o “Platonov”, de Tchecov, dirigido por Lev Dodin, no teatro Mali – mas tanto um como o outro só vão acontecer daqui a duas semanas). Cinema, só em russo ou dublado em russo. As duas únicas livrarias da cidade que vendem livros em inglês são um lixo. Parece não haver arte fora do Hermitage. O “centro cultural” dos alternativos fica, como quase tudo aqui, escondido nos fundos de um pátio caindo aos pedaços. Reúne um “museu de arte não-conformista” (ainda estou para achar o de arte conformista e aí poder tirar as minhas próprias conclusões com base na comparação), o primeiro bar “underground” da cidade e uma sala dedicada a eventos experimentais (shows, festas etc.). Tenho que voltar para conferir quando estiver aberto. Porque, onde quer que eu vá, tudo está sempre fechado (ou já acabou – quer dizer: está fechado para sempre). Devo estar indo nas horas erradas. Confesso que, embora goste muito de John Lennon, uma placa na porta do centro cultural alternativo, em homenagem ao compositor de “Imagine”, não me convenceu a voltar. Ainda mais porque tudo demanda esforço. E para chegar até lá tenho de pegar uma “marshrutka” (o lotação local) e gritar em russo na hora de descer (já que não há paradas fixas). Em geral, confundo os termos. Quando quero dizer “com licença”, digo “até logo”; quando quero dizer “bom dia”, digo “por favor”, e quando quero dizer “pare”, peço desculpas. De modo que só desço quando o motorista (ou outro passageiro) quer – e tenho de fazer o caminho de volta a pé.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Avenida Niévski










Estou há uma semana num apartamento da avenida Niévski, em São Petersburgo. Vou ficar um mês. A Niévski é a principal avenida da cidade e uma das mais célebres da literatura mundial, imortalizada no conto homônimo de Gógol, publicado em 1835, e de lá para cá citada em quase todo romance ambientado na cidade.
O narrador das “Memórias do Subsolo”, de Dostoiévski, se vê arrastado para lá, para ser humilhado. No século 19, a Niévski representava tudo o que São Petersburgo, uma cidade planejada, como Brasília, e construída à força, há 300 anos, queria ser: cosmopolita, européia, um porto para a civilização e a modernidade numa Rússia em geral atrasada e bárbara. E, de fato, com a construção da cidade nascia também a possibilidade da própria literatura russa.
Para ser cosmopolita, a Niévski tinha que ser ao mesmo tempo mundana, consumista (um dos primeiros shopping centers do mundo foi construído aqui, em 1757) e mercantilista, como assinala o conto de Gógol; tinha de acolher todas as classes e todos os tipos: dos nobres, militares e funcionários à escória da sociedade; das famílias distintas, durante o dia, às prostitutas à noite.
Hoje, a Niévski, de resto como as outras vias principais da cidade, é uma sucessão de belas fachadas iluminadas (ou em obras), encobrindo pátios e fundos decrépitos. A minha experiência na Niévski foi selada no terceiro dia na cidade. E, ao contrário do personagem de Dostoiévski, agora faço qualquer coisa para evitá-la.
Sem internet em casa, tenho de levar o meu computador ao cybercafé mais próximo, que fica a cerca de um quilômetro, descendo a Niévski. Nos dois primeiros dias, tudo correu muito bem. Meu computador é mínimo, de modo que cabe numa pequena mochila sem fazer vista. Eu já estava começando a me sentir um morador de São Petersburgo, com hábitos e vida cotidiana, quando fui obrigado a me render ao estigma do turista.
Voltando do cybercafé, às seis da tarde, dia claro, com a avenida apinhada de gente saindo do trabalho, percebo de repente três homens, todos mais altos e mais fortes que eu, confabulando atrás de mim. Resolvo parar por um instante, fingir que estou procurando alguma coisa, e deixá-los seguir em frente. Os três continuam uns metros e param também. Eu avanço, passo por eles. Eles retomam o passo. Eu paro de novo, volto atrás. Eles param e voltam atrás. Entendo que estou ferrado. Não tenho a quem recorrer, mesmo com a avenida cheia de gente. Não falo russo, não há policiais. Resolvo apertar o passo. Estão sempre atrás de mim ou ao meu redor. Estão na minha cola. Penso em entrar em algum lugar, mas tudo pode servir de armadilha.
Petersburgo não é lugar para um estrangeiro sozinho (tampouco São Paulo deve ser). A polícia é uma ameaça. Há sempre alguém pronto para reconhecer e atacar a vulnerabilidade onde quer que ela se manifeste. Quer melhor presa para as gangues da avenida Niévski do que um estrangeiro desacompanhado? Fiquei aterrorizado pela consciência do meu lugar de vítima, tentando escapar em vão ao balé que se armava à minha volta, com os três que se separavam e se reagrupavam num cerco mal dissimulado. Eu desviava, parava, avançava e retrocedia, e os três correspondiam aos meus movimentos. Só a voracidade do roubo podia cegá-los para o fato de que eu já tinha compreendido tudo e estava desesperado, como a presa consciente da iminência do ataque. Ou talvez isso os incitasse. Para mim, o mais incompreensível era que tivessem me escolhido no meio de tanta gente e que estivessem determinados. Não iam desistir enquanto não terminassem o serviço.
Estava pronto para começar a correr, quando olhei para trás mais uma vez. Como num passe de mágica, um dos três já estava com o meu computador na mão, a mochila aberta. Por sorte, eu tinha prendido o estojo do computador num gancho para chaves no interior da mochila, de modo que o sujeito não conseguia soltá-lo. Arranquei o computador da mão dele e comecei a gritar “polícia!” (militsia), com o dedo em riste. Ninguém fazia nada. O ladrão, inconformado, ainda gritou alguma coisa, tentando me intimidar, mas, diante da minha ênfase, desapareceu no meio da multidão, como os outros.Desde então, já não saio com nada. Reconheço o facínora até no técnico que vem consertar a televisão. Todos os guias da cidade alertam sobre o crime. Achava que fosse exagero. São Petersburgo foi construída com muito sangue, como parte de um processo civilizatório imposto e violento. O resultado, 300 anos depois, é uma cidade com fachada européia e índole de Terceiro Mundo.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Um mês sem falar




O horror confesso que eu tenho dos blogs me pôs numa sinuca de bico (devidamente ironizada pelos amigos mais próximos) quando descobri que durante a minha estada em São Petersburgo também teria que escrever um. Não é que não goste; eu detesto blog. Uma saída honrosa me pareceu fazer um blog só de imagens (dia 1, dia 2 etc.), com o título: “Um mês sem falar” – o que se justificaria por estar na Rússia e não falar uma palavra de russo. O título ficou, embora eu tenha começado a falar (e muito) já no primeiro dia. Assombrado pela minha precariedade de comunicação, resolvi me adiantar aos contratempos e comprar de uma vez a passagem de trem para Moscou que só vou usar daqui a uma semana. Amigos que viajaram pela Rússia recentemente me preveniram sobre o pesadelo e o risco da iniciativa, depois de tentarem se fazer entender por atendentes que podem ser tudo menos simpáticas (um dos princípios insepultos do comunismo é o de que nunca se deve ser servil) enquanto uma fila quilométrica aguardava a vez atrás deles. Na agência oficial de venda de bilhetes no centro de Petersburgo, um prédio cujo interior de mármore é um resquício exemplar de arquitetura soviética, não há uma, mas várias filas. E você tem a liberdade de escolher esperar na que você preferir. Depois de um momento de hesitação, me dirijo ao guichê 40. A espera é o tempo de anotar num papelinho todas as palavras de que posso vir a precisar (eu gostaria de..., data, hora, janela, não-fumante, expresso etc.) tiradas do mesmo “phrasebook” cujas situações que se oferecem como exemplo admonitório ao turista rivalizam com a minha própria paranóia (coisas do tipo: “não ponha essa droga no meu bolso!”; “não adianta pedir meu passaporte, só tenho fotocópia”; “eu te dou 50 rublos”; “me deixa descer!” etc.) e cujos conselhos incluem: “nunca acompanhe nenhum policial, a menos que tenha certeza de estar sendo preso”. Me mantenho firme com o papelinho na manga do casaco para quando chegar a minha vez e tiver de perguntar aterrorizado à atendente de uniforme, com a insígnia da companhia ferroviária bordada em letras douradas no peito, se ela fala inglês. A resposta esperada me faz tirar o papelinho da manga e começar a fazer o que eu não queria, e não só para não ter que escrever este blog: falar. Falo tudo o que copiei do “phrasebook”, diante de uma platéia de velhinhas e velhinhos espantados, na fila. Quando termino, exausto, a atendente precisa se controlar para não perder a carranca e começar a rir. Um dos velhinhos me dá os parabéns e os outros só faltam aplaudir. Depois de todo o meu esforço e de muitas idas e vindas da atendente com o meu passaporte, quando chega afinal a hora de pagar e ela escreve num papel o valor, ponho a mão no bolso e, conforme vou estendendo as notas na portinha do guichê, me dou conta de que não tenho o suficiente. A platéia, que acompanha tudo de perto, pressente na minha expressão o momento da queda. Uma mulher diz baixinho, consigo mesma: “Não vai dar, não vai dar!...” (alguma coisa que, para mim, soa como “Malaya, malaya...”). Sinto que estão do meu lado. A atendente também espera, parece torcer para que eu tire mais uma nota do bolso. Ela se levanta e reconta as notas, inconformada, como se quisesse multiplicá-las. Um homem aponta para um papel colado no vidro e arranha: “No credit card”. Sou obrigado a me resignar aos fatos e dizer que o dinheiro acabou. Olho para trás, para a fila, e pergunto se alguém fala inglês. As pessoas balançam a cabeça. Uma moça se adianta. Peço que ela explique à atendente que vou tirar dinheiro no banco e volto para pagar a diferença, mas antes de eu poder completar a frase, ela tira uma nota da bolsa e completa o preço da passagem para mim.