amores expresos

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Bani



Passei cinco dias em Moscou. Fui entrevistar Valentina Melnikova, presidente do Comitê das Mães dos Soldados, uma das ONGs mais combativas durante os anos Putin. A narradora do meu romance deve ser uma dessas mães. Os poucos petersburgueses com quem falo de Moscou torcem a cara. Moscou é cosmopolita. Os petersburgueses dizem que Moscou é violenta, dura e feia. É aqui, em São Petersburgo, uma cidade bem mais turística e provinciana, que acontecem os piores ataques (em geral, não reprimidos) dos skinheads neonazistas, contra gays e estrangeiros (sobretudo do Cáucaso e das ex-repúblicas soviéticas). Em Moscou, ninguém olha para ninguém. Há gente de toda parte e coisas acontecendo em toda parte. As cidades são as pessoas que você conhece. Conheci o Ilya por intermédio de uma prima dele que mora na França. O Ilya nasceu e vive desde sempre em Moscou. A família está na cidade desde que foi permitido aos judeus viver ali, depois da revolução de 17. Ele fala inglês sem nenhum sotaque. Agradece a uma ex-namorada americana. Pede desculpas pelo atraso de mais de uma hora. Estava jogando badminton, perdeu a primeira partida, pediu uma revanche e continuou perdendo até perder a hora. Me leva para jantar num restaurante moderninho e simpático, escondido no fundo de um pátio, num subsolo atrás de uma porta de ferro com um sinal discreto e mal-iluminado. Feito para não se achar. O lugar faz parte de uma cadeia e pertence a uma editora. Não há menu em inglês – o que faz toda a diferença (para o bem e para o mal). Pedimos vodca e, depois do brinde, com expressão aterrada, Ilya me interpela: “Não é assim que se bebe”. A etiqueta russa manda beber de um gole só. Explico que ele vai ter que se acostumar: cada um bebe como quer. É ainda sobre etiqueta que terminamos conversando na saída. Durante o jantar, ele me disse que eu não podia ir embora sem passar por uma “bania”. Eu já estava com isso na cabeça desde que pisei na Rússia. As “bani” são as tradicionais casas de banhos, uma espécie de sauna pública. No passado, era onde as pessoas se lavavam, uma vez por semana. A Sanduni, a “bania” mais tradicional de Moscou, fundada em 1896, fica a uns duzentos metros do restaurante onde estamos. As portas se fecham às dez da noite, mas o Ilya faz questão de me levar até lá, antes de voltar para casa, para eu aprender o caminho. Explica os detalhes, como é que eu devo me comportar lá dentro. Deve ter percebido a minha hesitação, porque no dia seguinte, na hora do almoço, me manda um torpedo: “Meu amigo Fedya está louco pra te conhecer. Olha só que coincidência: ele também vai à bania hoje. Que tal às duas? Ele vai te ligar”. Logo eu ia descobrir 1) que o Fedya não é amigo do Ilya, mas primo, e 2) que ele não estava nem um pouco louco para me conhecer (era só mais uma gentileza do Ilya). Meia-hora depois, recebo o telefonema do Fedya: “Te espero às duas, na porta. Vou levar uns chinelos pra você, por causa dos fungos. Ah! E não se esqueça: você vai me chamar de Fed”.
Fed é cameraman. Às duas e meia, na porta da “bania”, ele me apresenta Andrei, com quem trabalha nas filmagens de uma ficção-científica, com locações em São Petersburgo (passaram quatro meses na cidade, por conta do filme), no Mar Negro e em alguma praia da Itália que ele ainda não conhece. Os dois vêm carregados de sacolas. Pagamos as três entradas e subimos as escadas. No andar de cima, há um salão, com pé-direito alto, dividido em dois grandes ambientes. Há bancadas de madeira e estofamento de couro, com porta-casacos acima de cada assento. Podia muito bem ser um restaurante tradicional de gare de uma grande capital européia. A única diferença é que os clientes estão nus. Muitos são gordos e peludos. Às vezes, é uma família inteira: o avô, o pai e os filhos pequenos. Estão sentados nas bancadas de couro, comendo, debruçados sobre as mesinhas. Alguns estão enrolados em lençóis. A circulação é grande. Só o garçom atrás do bar, os atendentes e o gerente estão vestidos. Fed pede uma toalha, um lençol e um chapéu de feltro para mim. É um chapéu em forma de campânula, sem o qual é humanamente impossível entrar no que só se pode chamar de sauna por eufemismo – ou por sacanagem. Do lado do bar, há uma geladeira com tampo de vidro, dessas em que se armazena sorvete, com ramos de bétula seca plastificados a vácuo e congelados. Fed trouxe os seus feixes de casa. Ele os tira da sacola e me mostra. Também me entrega os chinelos de plástico. Nos despimos, deixamos a roupa e as toalhas na bancada e nos enrolamos nos lençóis. Fed aponta para o meu chapéu de feltro, que traz a insígnia da Sanduni estampada com endereço e telefone. Manda eu enfiá-lo na cabeça. Fed e Andrei também enfiam os seus chapéus na cabeça. Estão munidos com os ramos de bétula. Entramos na sala dos banhos. É um ambiente enorme, com pé-direito igualmente alto, e uma grande variedade de duchas e chuveiros (com balde de madeira no alto, jato único, jato múltiplo etc.). A atmosfera é de tradicional decadência. Há uma piscina de água gelada no alto de uma escada. Homens, velhos e crianças circulam por todos os lados. Uns esfregam e ensaboam os outros. Há muitas bacias de plástico espalhadas com ramos de bétula de molho. Andrei procura uma vazia para meter os feixes que trouxeram de casa. Seguimos em linha reta até a porta aberta no fundo da sala. É a entrada do inferno. Na porta, um homem gordo e peludo joga água dentro de uma fornalha. O calor é tão grande, que não só a porta mas também uma das janelas, que dá para a rua, têm de ficar abertas. Dentro da sala da fornalha, há uma escada em forma de arquibancada, que leva a um mezanino, aonde só se consegue chegar curvado – o infeliz que se mantiver ereto arrisca a pôr a cabeça em estado de incandescência. Daí o capuz de feltro. Todos têm os seus enfiados até os olhos. Alguns são personalizados. Há o sujeito que prefere usar um velho chapéu soviético, com a estrela vermelha na testa, e outro que entra com elmo de viking, com um chifre de feltro de cada lado. Ficamos sentados num banco no alto, curvados, gemendo, tapando o rosto com as mãos (é difícil abrir os olhos ou respirar sem a impressão de estar incendiando por dentro). Depois de alguns minutos, Fed diz “out”, e nós três saímos para os chuveiros. Volto a encontrá-los, sentados na bancada de couro do restaurante, enrolados nos lençóis. Fed quer saber da tentativa de roubo em São Petersburgo (soube por alto, pelo primo). Eu faço o relato. Ele começa a rir. Traduz para Andrei, que não fala inglês, às gargalhadas. Andrei também ri. Fed me pergunta o que aconteceria no Brasil, se eu tomasse meu computador de volta da mão do ladrão. Digo que, possivelmente, levaria um tiro. Fed cai de novo na gargalhada. Traduz para Andrei. Os dois riem a valer. Entramos de novo na sala dos banhos. Fed pega um maço de ramos de bétula da nossa bacia, uma entre dezenas, e nos dirigimos à sauna. Subimos ao alto da arquibancada e nos sentamos. De repente, um homem começa a se bater com o ramo de bétula. Outros começam a fazer o mesmo e em poucos minutos a sauna inteira está contagiada por uma coreografia de automutilação. Fed começa a rir. Alguns cobrem o rosto com os feixes da planta, depois de já terem abanado o corpo inteiro com ela. Outros se deitam de bruços nos bancos, nus, enquanto os amigos lhes infligem golpes nas costas, nas nádegas, nas pernas e nas solas dos pés. Um homem muito gordo bate em outro, deitado no banco. De repente, o que está apanhando levanta a cabeça, indignado, e reclama que o amigo não está batendo com força. Aponta para o próprio ombro direito enquanto faz a reclamação. O amigo retoma os golpes com mais violência. Fed também se deita e pede para Andrei espancá-lo. Quando acaba a sessão, voltamos para o chuveiro e para a sala do restaurante. Fed continua com folhas de bétula coladas pelo corpo. Andrei tira um peixe inteiro da frasqueira e começa a cortá-lo em rodelas sobre a mesa. O garçom vem servir chá. Enquanto os dois comem o peixe, pergunto a Fed se ele gosta dos filmes de Sokurov. Ele faz uma careta. Pergunto que tipo de filme eles estão fazendo. “Uma coisa entre o blockbuster e os filmes de festivais”, diz Fed, e cai de novo na gargalhada. É a história de uma experiência científica secreta realizada há vinte anos, em São Petersburgo, diz. Um grupo de cientistas consegue criar o protótipo de um ser humano que sobrevive debaixo d’água, até que o experimento é interrompido pela KGB. Vinte anos depois, os cientistas começam a morrer, assassinados, um depois do outro. Fed diz que é hora de voltarmos para a sauna. Pergunta se eu quero apanhar. Por que não? E é aí que eu descubro a graça da surra. O efeito é provocado menos pela força das batidas do que pelo vento que vem com o golpe e que faz o corpo pegar fogo, como quando você insufla uma fogueira. Saímos mais uma vez para os chuveiros e o restaurante e quando voltamos pela última vez à sala da fornalha é para espancar o Andrei. Fed e eu batemos com toda a força, num movimento cadenciado, até ficarmos exaustos. Passamos pelos chuveiros, nos vestimos, pagamos a conta no caixa e, quando nos despedimos do lado de fora, Fed me estende a mão e diz: “Bernardo, now, you family, you brother”.

5 Comentários:

Blogger Geverson B. Rodrigues disse...

O relato me causa sérias dúvidas entre o que há de real e a dose de ficção.Em todo caso, agora que já li, já não importa.

20 de setembro de 2007 às 07:13  
Blogger wilma disse...

o_o

e não rola viadagem não?


Casas de banho só são masculinas?

20 de setembro de 2007 às 12:56  
Blogger Guto Melo disse...

Cara, bacana essa história aí... A parte que eu mais gostei foi a da surra de bétula.

21 de setembro de 2007 às 18:54  
Blogger G disse...

HAHAHAHAHAHA

GENIAL.

Eu vi em um documentário sobre a Rússia o pitoresco costume de idosos irem às praças 'dançar', a música vinha de um som mecânico mesmo, e o evento era promovido pelas autoridades locais.

29 de outubro de 2007 às 12:54  
Blogger Sil disse...

hahaha excelente! passei mal de rir! fui a uma sauna no bairro russo de Brighton Beach em Nova York e passei por choques muito parecidos. La a sauna era mista então a maioria estava vestida, e não havia chapéu, mas o cenário adornado de dourado, grandioso e decadente estava lá, e o espancamento com folhas de bétula foi certamente a melhor parte!

4 de novembro de 2013 às 18:46  

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial