O idiota sou eu
Voltei para o meu internato de São Petersburgo. Graças a outra conexão francesa, saio para almoçar com Macha, na esperança de fazer contatos na cidade. Ela está em São Petersburgo por um dia. Vive em Moscou. É gerente de uma rede de três restaurantes franceses e uma loja. Uma vez por mês, vem fazer a inspeção da filial petersburguesa do restaurante, na ilha de Petrogradski. Macha nasceu no Quirguistão. Com a miséria que se seguiu ao fim do comunismo, os pais se mudaram para o Cazaquistão e ela foi para Moscou terminar a faculdade de medicina. Acabou gerente de restaurante. Durante o almoço, liga para seus contatos na cidade. Me dá os telefones de Dima (Dimitri) e de Tatiana. Dima é aspirante a fotógrafo e videomaker. Adora música eletrônica e Mickey Rourke. Ganha a vida como intérprete/tradutor, guia turístico e, eventualmente, faz produção de cinema – diz que trabalhou na “Arca Russa”, de Sokurov. Quer saber do romance que estou imaginando. Quando conto por alto a idéia, ele jura que não é homofóbico – o que me causa má impressão. E me confirma o que eu já sabia: que todos os bares e clubes interessantes da cidade ficam em volta da minha casa – mas que não há nada extraordinário acontecendo em São Petersburgo. Almoço com Tatiana no sábado. Ela é jornalista. Trabalha para a televisão (contanto que não se fale de política, não há censura). Faz matérias de moda e variedades e se veste como quem faz matéria de moda. É formada em literatura francesa, com dissertação sobre Nathalie Sarraute. Só para confirmar a regra, Tatiana não gosta de Moscou. Lá, as pessoas vivem correndo. Os petersburgueses, ao contrário, dão tempo ao tempo. Conta que até os sessenta anos (ou mais) sua tia fazia um buraco no gelo e mergulhava nua nas águas glaciais do rio Nieva, bem no centro da cidade, em pleno inverno (“Nua, é claro, porque de maiô podia pegar uma pneumonia!”). Diz que ainda há quem faça isso. Tatiana me explica que as coisas em São Petersburgo estão menos à vista do que em Moscou. As pessoas se encontram nas casas umas das outras. Resultado: continuo sozinho. À noite, vou ver o balé Forsythe, no Mariinski. Volto de ônibus. Passo pelo supermercado para comprar alguma coisa para comer, mas o supermercado está fechado. Há um restaurante asiático não muito longe de casa, que esteve na moda há três anos e agora está quase sempre às moscas. A comida não é de todo ruim e o serviço é simpático. Escolho uma mesa na área de não-fumantes, peço o prato e pego o programa do Mariinski para ler enquanto espero. De repente, sinto que alguém sentou na cadeira que dá as costas para a minha. Como o casaco do sujeito, sobre o encosto da cadeira dele, fica batendo no meu, sobre o encosto da minha cadeira, empurro a mesa para a frente e afasto a minha cadeira da dele. Continuo a ler. Percebo que o homem não pára quieto atrás de mim, e não pára de mexer no casaco. Também discute alguma coisa com a garçonete. Quando ele se levanta para ir ao banheiro, uma das garçonetes se aproxima e fala comigo em russo. Digo que não entendo e ela passa para um inglês precário, mas plenamente compreensível. Muito sem graça, pede que eu troque de mesa. Não entendo. Ela insiste, apontando para a cadeira vazia atrás de mim: “Bad man”. Sorrio e concordo. Pego minhas coisas e me levanto, ainda sem entender direito. Num primeiro momento, acho que o sujeito é algum tipo de bêbado idiossincrático, e que pediu que me removessem do entorno. Tudo bem. No caminho para a outra mesa, no entanto, me dou conta de que todas as garçonetes me observam, constrangidas. Uma delas pede que eu verifique se não sumiu nada dos bolsos do meu casaco. E aí cai a ficha. Não é possível. É lógico que tudo não passa de uma enorme coincidência. Evito tirar conclusões apressadas sobre a recorrência da tentativa de roubo em São Petersburgo (de fato, poderia acontecer em qualquer cidade do mundo). Devo ter a maior pinta de otário. Só pode ser isso. O efeito, entretanto, é incrível. Parece piada, pegadinha ou pesadelo. Mudo de mesa, mas continuo à vista do sujeito, que não pára de me olhar depois da decepção de voltar do banheiro e não me encontrar mais ao alcance da mão. Finjo que não estou vendo. Chega o meu prato. Começo a comer. E o sujeito, na maior cara-de-pau, sai da sua mesa, do outro lado do restaurante, e vem se instalar, de novo, na cadeira bem atrás da minha, na área de fumantes (e aqui ele começa a fumar). Não posso crer. As garçonetes, a gerente e o segurança do restaurante tampouco. Eu me levanto, furioso (estou começando a perder a paciência), tiro meu casaco do encosto, e me sento na cadeira do outro lado da mesa. Agora, posso ver o sujeito de costas. A julgar pela desfaçatez, ele será capaz de tudo. Garçonetes, gerente e segurança também aguardam, com expressões de alarme, o próximo passo. Mas o homem acaba de beber, pega o casaco, se levanta e sai do restaurante sem dizer nada. Pergunto às garçonetes o que houve, mas todas sorriem amarelo e desconversam. Enquanto eu janto, volta e meia o segurança vai até a calçada verificar se o homem foi mesmo embora. Quando afinal saio do restaurante, não há ninguém na rua. Já me disseram que sou paranóico. Se a minha paranóia for capaz de criar situações como as que tenho vivido desde que pisei em São Petersburgo, então devo estar desperdiçando os meus poderes paranormais.
4 Comentários:
Caro Bernardo, se tudo isso for verdade, só posso dizer que sua viagem tá pra lá de tenebrosa. Cada dia tenho mais medo de abrir o seu blog. Um beijinho
Sensacional. Se você conhecesse minha professora de russo Tanira Castro (formada em 'Física' na Rússia), entenderia que é mesmo um universo paralelo, verídico ou não.
Teu blog e o do Pellizzari são, na minha opinião, os melhores do projeto.
Parabéns.
quero ler o livro.
Nunca li nada seu. Estou descobrindo o blog hj, atrasada paca rs.
Vc escreve com fluidez, vou ler seus livros. Já sei que existe faz tempo, acompanho as premiações por ai. Ah! acabo de te ver no canal Arte 1, gostei do programa, de sua naturalidade. Franqueza. Abraços e boa sorte- acho que tem- conserve-a.
Elianne- laura
www.lauradiz.blogspot.com
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