Brincando de mímica em russo
Júlia e Natália são agentes literárias. Júlia nasceu em São Petersburgo. Natália é de Moscou. Mudou-se para a cidade porque o marido era daqui. Acabou ficando, mesmo depois de se separar. O namorado, Maxim, é arquiteto em Moscou. Compraram um apartamento no último andar de um prédio antigo no canal Griboiédova, com vista para o teatro Mariinski, a cinqüenta metros de onde Dostoiévski teria imaginado a casa da usurária de “Crime e Castigo”. Deve ser uma das vistas mais sensacionais do mundo. O apartamento não fica atrás. Durante o comunismo, serviu de “moradia comunitária” – um eufemismo para velhos apartamentos convertidos em cortiços, abrigando várias famílias, cada uma em um quarto, com banheiro e cozinha comuns. Essa era a regra no centro histórico da cidade durante o período soviético. Com o plano de privatização, quem tinha dinheiro foi comprando quartos – e realocando as famílias em outras moradias – até reconstituir e ocupar o espaço original dos apartamentos. Maxim fez a reforma. É ele quem me mostra o apartamento quando chego para o jantar de aniversário da Natália. É a primeira vez que ouço gente falando mal de São Petersburgo, em São Petersburgo. É verdade que quase todos são moscovitas expatriados. Sônia, com uma barriga de oito meses, me diz que já não consegue nem admirar a beleza da arquitetura. A única coisa que ela vê é a depressão no rosto das pessoas no metrô. “Esta cidade faz parte do mundo de Kafka.” Roman também só pensa em sair daqui. Quer ir para Moscou. A família veio de Vladivostok quando ele era pequeno. “Bastou eu descer o primeiro degrau da estação de trem para entender que não podia viver aqui.” E desde então é onde segue vivendo. Quando pergunto a Natália se não é complicado namorar alguém em Moscou e viver em Petersburgo, e por que ela não volta para Moscou, ela sorri e aponta para a janela, e para o apartamento. De fato, eu não trocaria essa vista por nenhuma outra. Como o ser humano é o mesmo em qualquer lugar, depois de vários brindes (primeiro para a aniversariante, depois para os pais da aniversariante e assim por diante até todo mundo já ter sido homenageado e estar mais ou menos alto), alguém propõe brincar de mímica. Perguntam se eu conheço as regras do jogo. Em um segundo, a sala é dividida em dois times e, para o meu horror (por pura gentileza dos anfitriões), descubro que faço parte de um deles. Mais louco do que ver e ouvir as pessoas brincando de mímica (todo mundo sabe que o integrante de um grupo deve conseguir fazer seus parceiros adivinharem a palavra que o grupo adversário lhe confidenciou) em russo, é ter de participar da brincadeira sem falar uma palavra de russo. Quando chega a minha vez, fazem a gentileza de sussurrar no meu ouvido, em inglês, uma palavra tão fácil (“revolução”) – quando todas as outras eram abstrações impossíveis de representar, que os convidados passavam horas tentando decifrar às gargalhadas –, que basta levantar o punho fechado para imediatamente um dos meus parceiros gritar “revolução”. Antes de eu sair, no final da noite, Roman me pergunta se já fui aos “guetos”. Está se referindo ao final das linhas do metrô, onde ficam os conjuntos habitacionais construídos pouco antes do fim do comunismo. Quando chegaram à cidade, Roman e sua família foram morar num desses bairros. Depois, se mudaram para um apartamento comunitário na ilha de Vassiliévski, onde ainda vivem. Dá para entender a impressão que ele tem da cidade. No dia seguinte, Roman acompanha nossa equipe (o Tadeu, que está aqui fazendo um documentário sobre o Amores Expressos, seu escudeiro Sasha, que é um petersburguês militante, e eu) até Kupchino. E, por incrível que pareça, é entre essa sucessão deprimente de enormes blocos de apartamentos, alguns em estado avançado de decrepitude, margeando uma imensa avenida, um mundo na maior desolação, que pela primeira vez reconheço a vida que eu procurava para o meu romance, a do outsider, que de alguma maneira tem a ver com a minha própria experiência na cidade e é a única que eu consigo entender. Não é idealização da miséria (não é propriamente miséria, como no Brasil – Roman diz que Kupchino é o menos horrível desses subúrbios). Pode soar imoral (certamente, porque não moro aqui), mas reconheço algum tipo de beleza nos garotos que jogam futebol na quadra de cimento no meio dos prédios, no imigrante do Uzbequistão que nos diz que um dia o mundo há de ser melhor e no pai sem camisa, fumando, com a filha pequena ao lado, no alto da escada de incêndio de um desses prédios monstruosos, numa tarde de domingo, debaixo do céu azul. E na escada de incêndio enferrujada e coberta de roupas, tapetes, lençóis e toalhas, a secar do lado de fora. Amanhã, vou embora de São Petersburgo, logo quando começava a entender alguma coisa. E, antes de partir, decido voltar pela terceira vez ao metro quadrado mais bonito do mundo. A sala 344 do Hermitage, onde estão a “Música” e "Ninfa e Satiro", entre outros quadros do Matisse. Só para sair da cidade com a melhor das impressões.
29 Comentários:
E sua mímica agora, uma mão estendida pra cima, balançando como um pêndulo, não provoca a ninguém uma ponta de gargalhada.
Saudades já de São Petersburgo.
Vontade de ver tudo isso...
Muito legal poder seguir você por aqui.
um pouco de literatura e muito de turismo... entao, what's your personal attitude? anna (russa)
Bernardo, o que vc faz quando sente solidão?
Rosele.
Rosele: roseleb@gmail.com
Hei, Bernardo... me conte como é estar em SP escrevendo um conto de amor!!?!??!
Leio, leio e não te "leio".
você pode não gostar de blogs, como já escreveu em posts anteriores, mas se saiu extremamente bem na construção de um, mesmo que sob encomenda.
Bernardo, ler seus textos - qualquer deles - sempre me parece como uma visita à casa de infância. São cheiros e referências e móveis e espaços que ganham uma oportunidade de releitura - por isso, de redenção. A graça de seus textos está exatamente em dar uma segunda chance, em deslocar e desencaminhar aquilo que se tem como certo.
De joelhos, abraços!
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Olá, li sobre sua estadia na Rússia... cara, tenho lido bastande livros russos e gosto muito. Tudo começou quando li um conto do Gogol...tenho a pretensão de fazer um tcc sobre alguma obra de Dostoievski (bota pretensão nisso!), mas ainda não tenho idéia, aliás, tenho varias, mas quando passo pro Word, elas vão embora e desfaço tudo, será que poderia me ajudar?
abraços
Para quem odeia blogs, você vai indo muito bem. Vou acompanhar de perto sua evolução!
OI...PRIMEIRO GOSTARIA DE REGISTRAR QUE SEU BLOG ESTÁ MUITO BEM COSTRUIDO...E EM SEGUIDA DIZER QUE ADORO SEUS LIVROS E ESTOU FAZENDO MINHA MONOGRAFIA BASEADA EM "NOVE NOITES", PORÉM ESTOU COM UM PROBLEMINHA, É QUE APESAR DE JA TER ESTUDADO BASTANTE SOBRE VOCÊ EU NÃO CONSIGO ENCONTRAR NADA SOBRE SUA BIOGRAFIA E PRECISO DESSES DADOS PQ ESTOU MONTANDO UM PERFIL SEU PARA FALAR DE SUA ESCRITA...CLARO SEM CONFUNDIR BIOGRAFIA E LITERATURA...ENTÃO PENSEI QUE NÃO HA NINGUEM MELHOR DO QUE VOCÊ PARA ME AJUDAR A FALAR DE VOCÊ MESMO. POSSO CONTAR COM SUA COLABORAÇÃO?
ABRAÇO
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Que surpresa boa achar seu blog a essa hora.
É hoje que não durmo!
ab
Maíra Knox
P.S. Apesar da hora ser postada errada, já está amanhecendo no Rio de Janeiro.
Oi Bernardo, meu nome é Jannine, sou de Recife e tenho um blog. Avabei de ler no Jornal do Commercio que vc estará aqui amanhã, no CAC, onde eu estudei, e à noite na Livraria Cultura, aonde eu irei se conseguir sair cedo do trabalho. Mas voltando ao blog, apesar de entender sua aversão, gostei muito deste que vc foi obrigado a manter, porque mistura escrever que é algo que eu gosto muito, com viagens, que só não sou mais viciada por pura falata de grana. Enfim, um cheiro e bem vindo a Recife!
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Vou tecer um comentário tímido, vindo de um fã, em seu blog pessoal...
O vi em 2005, quando tinha 17 e morava em Paris. Solitário, sentindo falta da literatura de minha terra, vi que autores brasileiros fariam uma palestra, nem lembro onde, mas fui. Diziam que Chico Buarque estaria lá. Não foi. Fato que não me deixou nada chateado, depois que o vi falando sobre nossa literatura e lendo em francês, um trecho de Nove Noites.
Cheguei em casa, longe da minha Vila Madalena, São Paulo, mas à côté de la Republique, liguei para minha mãe, milhares de quilômetros de distância e pedi Nove Noites, por Sedex, por favor... Ah, que bela companhia me foi.
Três anos se passaram, já li tudo que escreveu e, hoje, trabalho como técnico de projetos sociais com leitura e literatura infantil. Dou formação para jovens de escolas públicas em São Paulo para serem mediadores de leitura em suas comunidades. E este ano, vim lendo Nove Noites para os jovens, todos de 14 anos. Ontem o fiz de novo, resolvi passar aqui para contar, sem detalhes (não vou abusar) que como ocorreu comigo, os mediadores se apaixonam pelo livro e pela literatura em geral, com suas palavras. Tão fechados em suas comunidades, vêm abrindo-se. Enfim.
Uma escrita miraculosa, visionária.
Gostaria de trazê-lo à minha cidade, Campo Grande, para um diálogo com estudantes e Letras, é possível? Como devo proceder se a resposta for positiva.
Genoflexão respeitosa.
Não se sabe se foi assim que aconteceu.
Li o blog em uma noite de insonia, aguardo o livro... apesar do confesso horror por blogs, o resultado é bem interessante... tenho um blog, nele falo do meu prazer pela leitura e, de forma menos geral, pela leitura dos seus livros, que aguardei ansiosamente a partir do primeiro que li... grande abraço http://joziasbenedicto.blogspot.com/2009/01/prazer-da-leitura-bernardo-carvalho.html
Olá Bernardo Carvalho! Meu nome é Elaine Duarte e estou com um projeto de doutorado que envolve literatura e blogs. Por isso estou entrando em contato com autores que publicam pela internet ou que tenham blogs. Se você pudesse me ajudar nessa pesquisa eu agradeceria muito. Meu e-mail é naneduarte@hotmail.com.
Abraços
Att.
Elaine
Olá Bernardo
Gostaria de saber se você tem algum workshop programado para ministrar no Brasil.
Obrigado
danieldenardi108@gmail.com
Bernardo... como posso falar com voce sobre uma duvida que eu tive em um livro que voce escreveu. O livro é o Nove Noites.
Por que parou de postar?
Sou seu fã desde Nove Noites.
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Oi... enfim saiu o livro, comprei, tou lendo, enlouquecido com o clima de "paranóia" que perpassa teus outros livros, e que fica bem patente no blog... Estou escrevendo em meu blog minhas impressões sobre O Filho da Mãe, depois de escrever sobre minhas releituras dos livros anteriores... o link é http://joziasbenedicto.blogspot.com/2009/03/o-filho-da-mae-bc.html
grande abraço
Jozias
...
estou num grupo de leitura que o proximo livro é esse, estou doida para ler!
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